Deus vivo, religião morta


A maioria dos brasileiros é católica de nascença. E eu não fugi da regra. Nasci católico sem saber, como sem saber de tantas outras coisas também. Claro. Fui batizado, fiz primeira comunhão, fui crismado e por aí vai. E continuei seguindo sem entender bulhufas do porquê de tanto ritual. Seria uma maneira de comprovar a religiosidade?
Algumas vezes, ainda criança, fui levado para acompanhar algumas procissões na minha cidade natal, no interior de Pernambuco. E lembro-me daquele monte de gente seguindo uma imagem de santo masculino ou feminino, enquanto se cantavam aquelas ladainhas típicas com o predomínio de vozes femininas, bem agudas. Muitas mulheres usando véus escuros e seguindo em frente, muito sérias, concentradas, quase em transe. Elas olhavam pra frente, na direção das imagens, como se a única razão de viver estivesse naqueles santos mudos e balançantes, carregados por ombros dos homens justos e católicos, escolhidos a dedo pelo pároco local. E aquele rio de gente ia devagar tomando as ruas e arrancando lágrimas e gestos de sinais da cruz no peito dos que ficavam nas calçadas. E eu ali, sendo levado por entre saias de tias e avós, sem nada entender, esperando ansioso pela hora de ganhar pirulitos zorro e um bom copo d’água ao final do cortejo, como se um merecido prêmio pelo cansaço de tanto andar.
Depois de tantas procissões pra nada, missas de formaturas, missas de quinze anos, missas de batizados, missas de corpos presentes, missas de sétimos dias, missas de trigésimos dias, missas de anos de mortes, missas de bodas de algodão, prata e ouro, missas em ações de graças, missas do escambau a quatro... Pra absolutamente nada, a não ser afirmação e posição social dos participantes. Aí então é que fui perceber a inutilidade desses rituais católicos. Tudo é muito solene, respeitoso e bonito, com as autoridades sociais, e eclesiásticas sempre bem posicionadas de acordo com seus devidos destaques e merecimentos. Na igreja, quanto mais na frente, com lugar reservado, mais importante se é. Quanto melhor a roupa e os acessórios usados, mais perto se fica das autoridades estabelecidas. Quanto maior contribuição financeira na hora de recolhimento da oferta, melhor a consideração com esse contribuinte.
Ah, sim, de vez em quando, entre uma festa de santo e outra, se lembram de falar da mensagem do evangelho, segundo os vários Sãos. Sempre de acordo com a interpretação pessoal de cada pároco, que já se baseia na interpretação do interpretado pelos teólogos católicos, que já interpretam a interpretação dos escritores “santos”, que por sua vez são traduzidos por outros autores “santos”, que receberam mensagens “santas”, de outros tantos “santos”. E assim, há séculos e séculos, vêm sendo despejadas de uns para outros as verdades religiosas de cada um, de acordo com as interpretações pessoais também de cada um. E, é claro, cada um diz que a verdade propagada não tem a menor interferência nem quaisquer interesses pessoais, estão apenas divulgando a verdade divina (será mesmo que eles acreditam mesmo nisso?).  
Nas missas, entre bocejos disfarçados dos fiéis sentados, são passados alguns conselhos de boa convivência e algumas dicas subliminares de apoio político para esse ou aquele partido ou candidato do interesse da congregação no momento. Os fieis em pé, que ficam lá atrás, não estão muito atentos a isso, estão mais voltados pra outros interesses tipo, dar uma chegada na igreja para serem vistos e notarem que são católicos e fazem parte do social, ou para dar uma boa paquerada e ver o que pode rolar depois, ou ainda para comparecer ao encontro marcado, anteriormente, depois da missa, entre muitas outras opções.
Nessa percepção de coisas, ou seja, de acordo com a minha interpretação dos fatos, me senti ridículo em participar dessa chamada adoração ao Senhor promovida pela denominação dita católica. E, diga-se de passagem, de adoração ao Senhor, só o nome. Ou melhor, adoração a qual Senhor? Senhor à sombra de Roma, com seus sumos pontífices infalíveis e cardeais cheios de politicagem, sedentos de poder? Senhor do dinheiro e das riquezas mantenedoras das congregações espalhadas por todo o planeta, que por sua vez se nutrem dos dízimos astronômicos que seguram o luxo e as propriedades das autoridades eclesiásticas? Senhor da ilusão da salvação da alma através dos dogmas inexplicáveis e caridades impostas pelos milagres das imagens de gesso, barro e madeira? Senhor de castigos e sofrimentos necessários para provar que os galardões virão depois da morte, como prêmios póstumos? Senhor disso? Senhor daquilo? Senhor dos quais? Senhor dos tais?
-Então chega! - disse pra mim mesmo – Não quero mais saber de nada disso! E fui embora do catolicismo. Despedi-me e me despi dos rituais, das batinas bordadas, dos templos centenários, das estátuas mudas e dos dias santos, das festas de padroeiros e das procissões sem sentido. Mas, continuei na busca. Lendo, descobrindo, conversando, teorizando, duvidando, perguntando. Então, conheci doutrinas orientais, ciências espirituais, autoajudas para viver melhor, iluminações esotéricas, princípios de física quântica, etc.
Depois de tanto pensar e buscar, encontrei. Na minha cabeça, finalmente tinha descoberto algo novo. O protestantismo. E virei evangélico. De carteirinha e tudo mais. Cabelo grande? Cortei. Fumar? Parei. Beber? Inconcebível. Brinco? Jamais. Agora só calça comprida, camisa fechada e Bíblia na mão. Um cineminha lá uma vez? Desnecessário. Futebol? De maneira alguma. Televisão? Com restrições. Sexo? Não existe fora do casamento. Diversão? Nas comunidades da igreja. Namorar? Se for aprovado pelo conselho. Que felicidade, que maravilha, isso que é vida para Deus. Tudo funcionaria perfeitamente, afinal a partir de agora eu teria a proteção da congregação, por conta da oração do pastor e do grupo das obreiras. Agora as minhas necessidades estariam todas satisfeitas, pois a Palavra me garantiria o sustento da alma e me orientaria em todos os aspectos da vida. O mundo lá fora é imperfeito, mas na igreja todas as dúvidas e receios seriam resolvidos pelo conhecimento da verdade divina. Bastaria chegar e aceitar a Cristo, reconhecendo-o como único Senhor e salvador.
E tome louvor, e tome coral, e tome conjunto, e tome evangelização, e tome encontro de jovens, encontro de casais, encontro de senhoras, encontro de moços e moças, retiros espirituais nos feriados do mundo, cultos de juventude, cultos da família, batismo na água, batismo do espírito santo, participação em ministérios, chamado para missões, se tornar dizimista, se tornar obreiro, estudar a Palavra, divulgar a Palavra, não pertencer ao mundo lá fora, adorar ao Senhor...pronto, agora eu era evangélico, simples assim(muito simples, como pode se ver).
E mais uma descoberta sensacional: os denominados evangélicos eram iguaizinhos ao denominados católicos. Bastava tirar as imagens e não cultuar Maria (a famosa Nossa Senhora) e pronto. Tudo se repetia. Em vez de padres, bispos, cardeais e papas solteiros, todos com vontades sexuais oprimidas, santamente celibatários, teríamos pastores, ministros, apóstolos, bispos que podem casar e satisfazerem suas vontades sexuais, santamente casados. Em vez dos rituais católicos, teríamos rituais evangélicos com outros nomes e efeitos (batismo nas águas, santas ceias, imposição de mãos, etc), em vez de missas entediantes, teríamos cultos entediantes com irmãos bocejantes em igrejas sem imagens. Em vez de festas de santos, teríamos festas dos ministérios, aniversários dos grupos, dos corais, das escolas dominicais, e por aí vai. E como sempre, o dízimo. Este sim, sempre presente em todas as denominações evangélicas. E repetem-se as disputas pelo poder eclesiástico, as politicagens entre os ministérios internos das denominações e a discórdia entre as próprias denominações. E formam-se os grupos dissidentes, e novas igrejas evangélicas nascem aos montes, com seus nomes cada vez mais criativos e intergalácticos, ocupando e disputando fiéis entre si e entre as outras denominações ditas religiosas. O item comum entre todas, além do dízimo: adoração ao Senhor. Qual Senhor? Aquele mesmo Senhor dos adoradores católicos. O mesmo Senhor pregado pelos padres, bispos, cardeais e papas católicos. O mesmo Senhor, dito exigente, justo, castigador, misericordioso, amoroso, onipotente, onipresente e onisciente. O mesmo Senhor propagado pelas interpretações humanas de séculos e séculos. O mesmo Senhor sujeito e fabricado de acordo com a necessidade de cada igreja, de cada denominação, de cada padre, de cada pastor, de cada ministro, de cada bispo, de cada autoridade eclesiástica, de cada líder esperto que se diz religioso. O mesmo Senhor que foi transformado em prêmio para os fiéis que podem pagar mais. O mesmo Senhor da prosperidade que habita em cada dizimista mantenedor dos templos suntuosos e propriedades pastorais. O mesmo Senhor que se mantém sob as ordens dos poderosos líderes católicos e evangélicos, e que é distribuído entre os fiéis seguidores e pagadores das suas igrejas. O mesmo Senhor que pode ser comprado em forma de perfume que traz a paz ou em forma de spray que afasta demônios.
Eu definitivamente desisti dessa religião. Desisti de seguir esses líderes que se dizem representantes de Deus e se acham tão deuses, apenas por terem aprendido técnicas de comunicação e manipulação de pessoas. Desisti desses espertalhões da mídia religiosa, que submetem as pessoas a lavagens cerebrais para satisfazerem seus instintos maléficos, enquanto se passam por cordeiros santos. Desisti desses religiosos espertos que usam a Bíblia e outros livros considerados santos, lançados por eles próprios ou por seus consentimentos e bênçãos, para se aproveitarem dos cidadãos simples e se vangloriarem como donos da verdade e divulgadores da palavra divina. Desisti de ouvir ou seguir os conselhos desses líderes religiosos de quaisquer denominações, que mataram a religião com sua esperteza e tentam fabricar deuses com suas verdades e interpretações pessoais cheias de ódios reprimidos.
Numa comparação simples, concluo: religião é como o vício de fumar. A gente começa fumando um cigarro aqui outro ali e vai fumando mais. De vez em quando dizemos que temos o controle, mas, em seguida é o vício que nos controla. Quanto mais fumamos, deixamos de sentir o gosto dos alimentos, deixamos de sentir o cheiro das coisas e o cigarro toma conta de nós. Um dia, lá na frente, se conseguimos deixar o vício, perceberemos o mal que fizemos a nós mesmos, o tempo perdido no mau hábito, o dinheiro gasto, e nos arrependeremos amargamente. Mas, em compensação nos voltam o paladar, o olfato e a certeza de que nunca mais retornaremos ao vício, pois a conquista da saúde supera tudo e nos torna vencedor. Assim como deixei de fumar, consegui deixar o vício chamado religião e venci. Recuperei a saúde mental, valorizei o amor próprio e me senti cada vez melhor comigo mesmo. Agora, me sinto capaz de seguir a Deus, independentemente dessas religiões midiáticas. Também recuperei minha saúde religiosa e descobri um Deus maior que todos os líderes humanos. Um Deus que não é humano nem se submete às regras humanas. Um Deus que ocupa todos os lugares com igualdade e equilíbrio. Um Deus que nos quer felizes para sempre, fazendo-nos eternos e únicos. Um Deus que é e está em todos os universos, visíveis e invisíveis aos nossos olhos. Um Deus que nos tem como filhos e nos torna irmãos. Um Deus que criou e continua criando todas as coisas. Um Deus que se renova a cada minuto, cuidando e transformando. Um Deus que detém poder até sobre o tempo. O Deus do não-tempo. O Deus que se permite estar em nós, como centelha viva. O Deus pai que primeiro criou o amor e a partir de então tudo mais. O Deus sem principio e sem fim. O Deus sem religião.

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