Na fila da lotérica



Não resisti, tenho que contar essa.
Por volta das 11h30, estava eu no centro da cidade, na fila da casa lotérica, ainda na calçada, quase entrando. No batente da loja do lado, estavam sentadas duas senhoras conversando, abrindo as quentinhas com o almoço e começando a comer com garfos descartáveis. Confesso que dei um jeito de, disfarçadamente, acionar o gravador do celular pra tentar registrar a conversa, mas não adiantou muito, só pegou uma parte da voz da senhora mais falante. Ainda tinha o barulho do ambiente e por conta da fila andando, eu me virava segurando o celular com a mão mais pra baixo, em direção às duas, depois comecei a coçar a perna algumas vezes com o celular, na esperança de chegar mais perto mas, não deu certo. Me pareceu que elas trabalham vendendo alguma coisa nas calçadas, ou entregando alguma mercadoria. Esse diálogo delas é que me fez desejar que a fila não andasse até a conversa terminar.
- Oxi mulher, ainda tás com essa cara emburrada? Vai me dizer que ainda é por causa do teu ex.
A outra deu um muxoxo – Ah, e era pra ser por causa do quê?
- Mas tu é muito besta visse. Já faz quanto tempo essa separação?
- Fazer um ano para o mês.
- Meu Deus mulé. Sai dessa. Vai viver tua vida em paz e deixa os outro viver também.
- Acho que ele tá é com outra visse.
- E daí, num já tá separado?
- Eu sei...mas ...
- Óia, vou te dizer uma coisa. Tu dissesse que ele falou que não gostava mais de tu quando saiu de casa. Num foi?
- Foi.
- Tu queria o quê? Queria ficar com um home sem gostar de tu dentro de casa, sendo falso com tu? Fazendo de conta só?
A outra parou de comer e ficou olhando pra rua – Não, né.
- Então, o cara se aguentou até tua menina começar a trabalhar, saiu de casa, deixou tu em casa, toda mobiliada, num tirou nada, só as coisa dele, deixou a moto pra tu, ainda paga a prestação do teu celular, que eu sei, as vez manda até feira pra vocês, que eu já vi, e tu me dissesse. Tu devia ter mais consciência visse e agradecer a Deus por esse home ser decente com tu e tua filha. Tem vergonha nessa tua cara mulé. O home sai sem nada, tendo que começar tudo de novo quase do zero, e olha que ele não é mais nenhum rapaizim não. Ainda bem que tá empregado, nessa crise toda. Deixa o cara em paz  como ele te deixa, vai olhar pros horizonte que tem muito caminho pra se andar. Ele deixou de ser teu marido. Marido num é nem parente, mas não deixou de ser o pai da tua filha e eu sei que ele gosta muito dela. Agora tu fica rendendo essas murrinha que tu fica arrodeando na tua cabeça e butando coisa onde não tem. Óia, sei não, tu devia era procurar uma doutora psicóloga, dessas que a pessoa fica conversando. Se eu tivesse dinheiro sobrando pagava pra tu ir. Eu acho até que tem de graça lá no ambulatório da faculdade. Será? Já ouvi falar. Sei não.
- Mas é nada. Hum!
- Eu te conheço, né de agora não. Tu adora uma complicação, aposto que fica botando coisa na cabeça de Nazinha (ou Lazinha, devia ser o apelido da filha).
- Que nada, no começo ela chorou que só, mas melhorou, pelo menos tem o namorado né?
- Chorou que só? Oxi, uma menina que já é de maior? Chorando por causa de uma separação? Essas coisa que mais se vê nas novela, nos BBB, nos feicebruc e zap zap? Acho é bem capaz de tu ficar enchendo a cabeça da menina com tuas invenção, acaba prejudicando a convivência dela com o pai, sem necessidade. Cuidado visse, deixa a menina em paz com o pai, se não tu vai encher a cabeça dela de enrolação e estraga a menina. Aí, a menina fica pior do que tu. Fazer um chororô por isso, é melhor nem namorar nem casar. Deus a livre.
- Vixe, tá bom. Deixa de me dá carão.
- Pois é, vamo comer em paz.  Já basta as agonia do dia a dia. Mas vê se toma tenência visse. Pensa mais em tu e na tua filha, deixa de se importar com a vida dos outro. A vida da gente já dá trabalho demais.

Eu continuava economizando os passos na fila e o espaço na minha frente já estava um pouco maior. A pessoa que estava atrás de mim me deu um leve toque nas costas, avisando que a fila já tinha andado e eu tive que avançar.  Cheguei a ouvir um pouco do próximo assunto, elas começaram a falar de uma vizinha que se acordava de madrugada pra encher todas as vasilhas de água da casa, além do reservatório que era imenso e tomava a água da rua toda só pra ela... e não ouvi mais nada. Após ser atendido no caixa da lotérica, quando me virei pra sair elas não estavam mais lá na calçada.  Quanta coisa se conversou ali, quantas lições de vida em tão pouco tempo. Apenas escutando uma conversa aparentemente tão simples a gente percebe que os problemas estão em todo lugar, basta haver um encontro de pessoas, um relacionamento qualquer, bastam dois corações, duas mentes, duas ideologias e por aí vai. Os conflitos estão por aí, à nossa disposição, é só querer resolvê-los da melhor maneira possível. De quando em vez, quem sabe, levar um carão pode ajudar e muito.

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