Noites com Clarice


Assim, sem mais nem menos, hoje, pensando aqui com meus botões, como se os botões pudessem responder a algum pensamento meu, lembrei que há algum tempo atrás, lá pelo final da década de 80, início de 90, na cidade de Recife, eu podia, tranquilamente, sair à noite, encontrar com amigos em Olinda, ficar até as duas da manhã em um barzinho e voltar pra casa bem devagar, ouvindo música no rádio do carro, com os vidros abertos aproveitando a brisa da madrugada. Saía de casa por volta das nove da noite, num fusquinha, pegava uma amiga em casa e ia direto pra Olinda, para o bar chamado Relicário, que funcionava por trás do museu de arte sacra no alto da Sé. O bar tinha as mesas espalhadas no gramado, por entre arvores centenárias e nós pedíamos campari com tônica e rodelas de limão. Uma dose durava muito tempo, e o vermelho intenso da bebida ia perdendo a cor de tanto misturar com a tônica, até quase não restar mais. A gente esticava as bebidas o mais possível, antes de pedir a segunda dose pois, estudante tinha que economizar em todos os gastos. Menos nas conversas. Meu Deus, como conversávamos. Era assunto que não tinha fim. Se falava de um tudo. Dos colegas da turma, das aulas chatas, das palhaçadas, das brigas, dos namoros, dos novatos, dos professores, de política, de filmes, dos problemas pessoais e quanto mais houvesse noite e campari e tônica, mais assunto brotava das cabeças e talvez até das árvores tão companheiras e confidentes. Mas, dentre todos os assuntos, o que não faltava era falar dos livros de Clarice Lispector, que pra nós era simplesmente Clarice. Ela parecia tão íntima da gente, como se estivesse por ali, compartilhando a mesa conosco. Ou numa mesa próxima, sem interferir no papo mas, nos ouvindo, sem qualquer interferência. E nos surpreendíamos sempre, a cada descoberta, a cada frase ou ideia nova que saltava das páginas Clariceanas. E cada um interpretava de um jeito. Podia ser uma história de uma paixão segundo um GH, contada a partir de uma barata no guarda-roupa, ou uma maçã no escuro, um brilho de um lustre, a hora da estrela tão insignificante e ao mesmo tempo contundente ou ainda uma legião estrangeira que surgia e sumia, como se perto de um coração selvagem, restasse ao menos um sopro de vida. Coisas que só Clarice sabia falar contando ou simplesmente contar falando, de uma maneira única, simples, por vezes tão terna, outras tão avassaladoras. Assim as noites se faziam eternas, como se as horas passassem lânguidas e as palavras permeassem o agora daquelas horas mágicas. E todo o mais era bom, a vida parecia melhor, a convivência humana se tornava tão necessária quanto a solidão. O falar sobre, era, antes de tudo essencial, ensinado por Clarice. O calar-se era imprescindível, entre o pensar e dizer. Mas, o viver, o perceber, o compartilhar a vida incontestavelmente, nos fazia aprender mais e continuar, sempre.
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